quinta-feira, abril 28, 2011

A Mulher Elástico por Maria Helena Fernandes[2]


Em uma tarde de domingo envolta em uma fina garoa paulistana, sou despertada do sonho dos meus pensamentos longínquos por uma solicitação dos meus filhos. Eles me pedem para levá-los ao cinema – querem assistir ao filme da Disney - Os incríveis.
Sou arrastada pelo entusiasmo deles a permanecer numa longa fila, na companhia barulhenta de uma infinidade de pais, avós e crianças que se acotovelam na entrada da sala do cinema na tentativa de conseguir um bom lugar. Pipoca, coca-cola e chocolate! Enfim, bem instalados nas poltronas, esperamos o filme começar.
Vou aos poucos sendo novamente transportada para os meus pensamentos longínquos pela fineza do filme. A imagem do cotidiano de uma vida familiar se desenha na tela. Uma vida cheia de encantos e desencantos, como todas as outras. Tarefas, alegrias e tristezas, limites e frustrações, lamentos e questionamentos são experimentados pelos personagens: um casal de ex-super-heróis e seus filhos que, impedidos de exercerem seus poderes, são obrigados a levar uma vida “normal”.
Compõem a família o Sr. Incrível, cujo poder está na força; a Sra. Incrível que se transforma na mulher-elástico; a filha mais velha, uma garota de uns 12 anos, magrinha e tímida, que pode se tornar invisível; o filho do meio, falante e ágil, cujo poder é correr a uma velocidade enorme; e um bebê, engraçadinho e comilão, que, de início, parecia ser o único a não ter nenhum poder de super-herói.
Vou me dando conta da fineza da escolha dos poderes dos personagens, à medida que me vejo facilmente interessada pela figura da mulher-elástico. Percebo ainda, na reação dos meus filhos, que eles também vão se interessando, aqui e ali, pelas características dos personagens, identificando semelhanças e diferenças entre estes e eles próprios. Não demora muito para trocarmos uns olhares de cumplicidade e umas risadinhas diante de algumas cenas que evocam algo muito conhecido para nós.
Saímos do cinema discutindo animadamente o filme, uma discussão que acompanhou a semana, evocando sempre, em mim e nas crianças, algum detalhe esquecido, alguma associação nova. Não preciso dizer que a partir daí a imagem da mulher-elástico não me abandonou mais. Que excelente representação para a mulher na pós-modernidade! Sou assim mais uma vez transportada aos meus pensamentos longínquos e vou ao encontro da psicanálise, em busca de um instrumental para continuar pensando na mulher-elástico.
Freud localiza o mal-estar do seu tempo na repressão da vida sexual devido à moral civilizada daquela época. Inicialmente, ele compreende que a neurose atinge mais as mulheres do que os homens - embora esteja certamente presente também nestes últimos - justamente porque elas são o alvo privilegiado dessa moral repressora. Ao restringir a sexualidade ao casamento, a sociedade da época de Freud organizava-se para manter a mulher no espaço privado, longe da “tentação” do espaço público, fonte de saber e de autonomia.
Desde a década de 50, as transformações no modo de vida das mulheres vêm se processando de maneira mais acelerada. A entrada no mercado de trabalho e o acesso à formação universitária e às novas formas de erotismo organizaram a luta feminina em defesa dos seus direitos. A pílula anticoncepcional e as mudanças nos contratos matrimoniais foram, aos poucos, igualmente organizando a saída da mulher do âmbito doméstico, e do exclusivo cuidado dos filhos, para o espaço público, antes reservado ao mundo masculino.
Essa progressiva conquista do espaço público trouxe para a mulher uma infinidade de ganhos que, como não poderia deixar de ser, exigiu seu preço. Um preço que solicita uma mudança na posição subjetiva da mulher, o que certamente exige a passagem pelo luto das perdas de garantia das antigas posições. Caminho tortuoso e difícil, pois a estrada em direção à autonomia, única via de acesso ao encontro com novas realizações, exige que a mulher assuma o preço da responsabilidade de uma posição de sujeito, propriamente desejante.
A mudança dos tempos traz sempre consigo a transformação dos ideais, que são o resultado das novas conquistas do ser humano no saber sobre si mesmo. Ocorre aí o abandono de interesses antigos e a descoberta de novos interesses e necessidades. No entanto, para as mulheres a mudança dos tempos trouxe também uma ampliação dos ideais. Ou seja, no que diz respeito à sua inserção na cultura, as mulheres confrontam-se hoje não apenas com as transformações dos ideais, mas com um verdadeiro acúmulo deles.
Presas à necessidade de corresponderem ainda aos ideais do espaço doméstico, reinado de suas mães, as mulheres se vêem hoje tendo de corresponder também àqueles próprios do espaço público, antes reinado exclusivo dos homens. Às voltas com a necessidade de percorrer o difícil caminho que qualquer mudança de posição subjetiva exige, as mulheres parecem ter hoje diante de si um espectro amplo de ideais a buscar alcançar.
Esticadas entre uma identificação passiva e materna e outra ativa e fálica, as mulheres vão tentando lidar com o excesso que caracteriza as demandas do seu cotidiano. Resulta daí um verdadeiro acúmulo que exige uma elasticidade nunca antes sequer possível de ser imaginada. Se a necessidade de perseguir ideais constrói a trajetória cultural do ser humano ao longo do tempo, a trajetória das mulheres nos permite constatar que, ao ideal de santidade e beleza, veio juntar-se também o ideal de sucesso, tão caro a nossa cultura pós-moderna.
Assim, a meu ver, a melhor representação do ideal da mulher pós-moderna é a figura da mulher-elástico, tão magistralmente ilustrada no filme infantil Os incríveis. Para tentar corresponder ao seu amplo espectro de ideais, a mulher pós-moderna precisa ter um funcionamento verdadeiramente elástico. Deve desempenhar-se, com sucesso, numa gama tão variada de funções que só mesmo uma elasticidade originária poderia lhe garantir, ao menos, algum êxito numa empreitada tão incrível, própria dos super-heróis!
Não posso deixar de pensar aqui que se a particularidade da relação da menina com a castração, tal como destacou Freud, assegura a esta uma dificuldade de acesso à sublimação e à construção do superego, é essa mesma particularidade que parece lhe garantir a elasticidade de sua organização libidinal e, conseqüentemente, a diversidade de suas possibilidades identitárias.
Se, por um lado, a experiência da mulher com seu corpo encontra na irredutibilidade da sexualidade perverso-polimorfa uma diversidade de possibilidades de gozo sexual, por outro, a diversidade identitária garante às mulheres uma elasticidade considerável de seus interesses, não apenas sexuais. Fala-se com freqüência nessa capacidade que têm as mulheres de fazerem muitas coisas ao mesmo tempo e de conservarem, simultaneamente, investimentos genuínos em interesses diversos. No entanto, para além dessa elasticidade originária, não existiria também nessa amplitude de exigências que caracteriza o cotidiano feminino, uma dimensão essencialmente conflitiva?
Em busca de corresponder a essa amplitude dos ideais próprios de sua época, a mulher-elástico precisa ser não só a mulher ideal, mas precisa também ter o corpo ideal. Além de mãe dedicada, compreensiva e bem-humorada, a mulher-elástico deve conservar-se sempre jovem. Amante ardente e bem disposta, apresenta uma tal diversidade de interesses que consegue perseguir, com igual obstinação, os exercícios físicos necessários à manutenção do corpo ideal, assim como seus interesses culturais nos destinos da humanidade.
Mantendo um pé na academia de ginástica e o outro na última mostra de cinema do momento, a mulher-elástico é medianamente culta. Bem-informada, fala de qualquer assunto, mesmo que deixando entrever uma certa mediocridade em muitos deles. Realizada e bem-sucedida profissionalmente, a mulher-elástico, além de magra, bonita e bem-cuidada, é também economicamente independente. Assiste a um filme de Godard com o mesmo entusiasmo que entra em uma churrascaria, embora se veja privada de boa parte do menu disponível. Serena e controlada, a mulher-elástico come carne, mas só se for acompanhada de salada!
A hipervalorização da magreza na pós-modernidade tem acentuado a relação entre a auto-estima e a imagem do corpo magro, particularmente para as mulheres. Há vinte anos as modelos pesavam 8% a menos que a média das mulheres; atualmente essa diferença subiu para 20%. Embora a aparência física seja um elemento fundamental na imagem da mulher em diversas épocas e culturas, a magreza nem sempre foi o ideal almejado. Muito pelo contrário.
Uma breve passagem pela história da arte revela que a Renascença valorizava mulheres de corpo farto, quadris grandes e abdomens avantajados. Embora se saiba que a exigência de magreza nas mulheres tenha começado por volta dos anos 20, em sintonia com o início do movimento de liberação da mulher, nas décadas de 40 e 50 as estrelas de Hollywood, como Rita Hayworth, por exemplo, encarnavam o modelo das mulheres de seios fartos e corpos curvilíneos, valorizadas por seu sex appeal. Essa exigência de magreza parece se intensificar a partir dos anos 60 e se acentua consideravelmente nos anos 70. A imagem do corpo ideal começa a centrar-se na imagem de um corpo magro e de formas menos arredondadas.
Embora os padrões estéticos tenham se modificado consideravelmente com o tempo, a luta para atingir o ideal de beleza vigente é algo que marca a relação da mulher com seu corpo em todas as épocas e culturas. Michel de Montaigne chama a atenção em seus ensaios, escritos em 1580, para o fato de que as mulheres desprezam a dor em função da vaidade. É assim que, ao longo dos tempos, as mulheres escravizam seus corpos em nome do ideal de beleza ao qual aspiram em cada época.
Houve o tempo em que esfolavam a pele para adquirir a tez mais fresca, ou buscavam propositalmente estragar o estômago para conseguirem a palidez valorizada na ocasião ou, ainda, apertavam o ventre em duros espartilhos para exibir um corpo delgado. Qualquer semelhança com a submissão das mulheres atuais aos tratamentos estéticos e cirúrgicos, muitas vezes bastante dolorosos, ou sua especial dedicação às dietas alimentares para emagrecer, muitas vezes radicais e perigosas para a saúde, não é uma mera coincidência.
O ideal de magreza domina a cena pós-moderna, tendo se constituído não somente como sinal do corpo ideal, mas também como sinal de sucesso. Constituindo-se até como sinal de perfeição moral, o corpo magro é a senha do sucesso, passaporte para se conseguir beleza, poder e dinheiro. Assim, o ideal do corpo magro e de formas bem-esculpidas exige da mulher-elástico disciplina e firmeza, só desse modo poderá permanecer no ringue da luta em busca da beleza fetichizada pelo seu tempo.
Engajada na busca da beleza magra, do corpo fino e rígido, lança-se a mulher-elástico na corrida insana para não perder o bonde do seu tempo. Escrava da amplitude e diversidade dos ideais, dos quais precisa ao menos conseguir se aproximar, a mulher-elástico, vitimada pelo excesso e pelo cansaço diante de suas incríveis atribuições, vive culpada frente à constatação da impossibilidade de ser tudo isso que se exige dela.
Endividada consigo própria e com os outros que a cercam, a mulher-elástico é, ao mesmo tempo, por definição, culpada e impotente. Experimentando sempre uma dolorosa sensação de que algo lhe escapou, de que algo transborda sempre do seu cotidiano impossível, a mulher-elástico constata, desamparada, que seu corpo dói!
Cabe aqui uma primeira pergunta: para que tudo isso? Às vezes é no ponto limite da dor que se pode encontrar, ou reencontrar, o próprio limite a essa espécie de tirania velada que nos leva, freqüentemente, a nos posicionarmos como objeto no desejo do outro. Ora, se a psicanálise não nos oferece respostas, ela certamente nos ensina a formular perguntas. Poder reinventar, a cada dia, os caminhos do próprio desejo, e seguir construindo um discurso próprio supõe uma mudança de pergunta: para quem tudo isso? Essa mudança de pergunta supõe a existência de um sujeito a quem se destinam os esforços realizados e, certamente também, os prazeres das vitórias conquistadas. Isso exige que a mulher se pergunte, a cada vez, se é ela mesma o destinatário desses esforços, se é ela mesma o sujeito dessa pergunta.
Todas nós experimentamos na carne as diversas formas de manifestação da angústia que essa exigência de elasticidade acaba por despertar no cotidiano. Se abandonar o terreno das certezas não é nem mesmo uma escolha para a mulher pós-moderna, visto que há muito as certezas já se foram, nos resta entretanto a possibilidade de reconhecer a dimensão essencialmente conflitiva colocada em cena pelas nossas próprias conquistas em direção à autonomia.
Obviamente, não se trata de culpabilizar as conquistas e os avanços obtidos através delas, nem muito menos de defender um retrocesso a posições anteriores. Sem ilusões, devemos admitir que o que tínhamos antes certamente não era melhor do que o que temos hoje. Devemos, ao contrário, usufruir prazerosamente de tudo que foi conquistado. Trata-se, então, de nos colocarmos no interior mesmo do conflito para poder problematizá-lo, para circunscrevê-lo através da circulação de perguntas e não da enunciação de ingênuas certezas.
E, assim, em nosso caro mundo pós-moderno seguiremos adiante, todas nós, mulheres-elástico, cansadas, doloridas, culpadas e cheias de incertezas, porém, sem jamais perder um certo brilho que insiste em sobreviver, que insiste em clarear as perguntas. Uma espécie de testemunho de rebeldia, que nos constitui e nos habita. Herdeiras da Fênix, somos consumidas pelo fogo com mais freqüência do que seria desejável, no entanto... renascemos das cinzas! talvez somente por teimosia ou, simplesmente, por insistir em sustentar a esperança de viver meramente, como diz Caetano, sabendo “a dor e a delícia de ser o que é”.

Bibliografia

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Esta é uma versão revista e ampliada do texto que foi publicado originalmente na Revista Viver Mente &Cérebro, 161:28-33.

[2] Psicanalista, Doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII, com pós-doutoramento pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, professora do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae e autora dos livros L’hypocondrie du rêve et le silence des organes: une clinique psychanalytique du somatique (Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 1999), Corpo (Coleção “Clínica Psicanalítica”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003) e Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia (Coleção “Clínica Psicanalítica”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006).

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